O meu pediatra uma entrevista de Luís Gouveia Monteiro com Luís Januário para a revista Pais & Filhos (edição de Janeiro 2008)
A infância é um país sagrado, um sítio que não se repete. Muito cedo na vida se torna tarde demais para conquistar aquilo que se perdeu nos primeiros anos. É importante voltar ao pediatra se estamos a pensar em ter filhos. Luís Januário, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), diz que amamos cada vez mais as nossas crianças, mas passamos cada vez menos tempo com elas. O pediatra aceita fazer o retrato de uma memória inventada: o momento em que um aspirante a pai se encontra com o pediatra que gostaria de ter tido. Parece confuso, mas leia até ao fim. É tudo uma questão de ter tempo.
Luís Januário é o novo presidente da SPP. Já era vice na direcção anterior, diz que é um processo de continuidade. A SPP é a associação científica dos médicos pediatras. Reúne cerca de 1300 sócios de diversas sub-especialidades. A conversa com o meu pediatra decorre no Hotel Ritz, em Lisboa. A meio de uma tempestade de cérebros sobre gripes, vacinas e pandemias, promovida pela Fundação Fulbright. Os dias agora são muito curtos. Às três e meia da tarde a luz é muito bonita no salão do hotel, com vista para o Parque Eduardo VII, mas desaparece depressa nos lugares remotos da infância e da adolescência.
- Qual é o programa da nova direcção da SPP?
Há muitas coisas que estão a acontecer na pediatria e há outras que estão paradas, por exemplo, nas vertentes sociais da pediatria. A Sociedade tinha uma secção de pediatria social, que se auto-extinguiu. O que significa que aspectos ligados aos imigrantes, às minorias étnicas e às crianças maltratadas não têm tido nenhuma projecção, nenhum estudo particular, nenhuma abordagem por parte dos pediatras enquanto associação. A revitalização de algumas secções ligadas a temas menosprezados é um objectivo. Outro objectivo são os temas relacionados com a ética na pediatria e com a investigação. Temos esperança de que os esforços dirigidos para essas áreas tenham sucesso.
Outra das nossas grandes preocupações é a política do medicamento. Muitos medicamentos não têm indicação pediátrica. Muitas doenças em pediatria não têm medicamentos que lhes sejam directamente dirigidos. Isto porque a experimentação na criança é difícil, põe problemas éticos como o consentimento informado dos pais, é mais cara, tem um mercado reduzido...
- É um problema mundial?
- Sim, é um problema mundial. O mercado pediátrico é diferente do mercado geral de medicamentos. Muitos dos medicamentos que são utilizados em pediatria são-no para lá das suas condições de licenciamento. Na gíria diz-se que é uma utilização off label. Uma das vertentes do nosso trabalho é fazer com que estas questões sejam percebidas a nível nacional. Temos que tornar os medicamentos disponíveis para as crianças que precisam deles.
- Os pediatras sentem que há problemas médicos para os quais não têm medicamentos?
- Os pediatras estão a utilizar medicamentos que não foram produzidos para as crianças, em doses que não estão testadas, ou então estão a utilizá-los em circunstâncias que não são as da investigação do medicamento. Os estudos feitos, quer em hospital quer em ambulatório, indicam que 60 por cento dos medicamentos usados em pediatria são utilizações off label. Outra vertente do problema é a inexistência de fórmulas pediátricas, não existirem xaropes ou soluções orais para crianças, o que leva à necessidade de recorrer a manipulados, medicamentos preparados nas farmácias. Em relação a isso tem havido um progresso bastante grande. As farmácias hospitalares e oficinais neste momento estão prontas para preparar medicamentos manipulados desde que os médicos os prescrevam. Mas muitas vezes os médicos não têm consciência de que o podem fazer. Por outro lado, a legislação actual não foi acabada e por isso esses medicamentos, neste momento, não têm comparticipação estatal. O que significa que, de uma maneira encoberta, em Portugal há imensas famílias que necessitam de medicamentos cujo preço, de há um ano ou dois para cá, aumentou 100, 200 ou 300 por cento. Isto porque só se podem obter através de manipulados. São situações em que podemos intervir de uma maneira científica e consensual e em que podemos ter impacto. Estamos a falar de medicamentos para doenças de minorias, mas essas minorias todas juntas dão uma massa muito grande da população. É preciso muito, muito trabalho. Temos que juntar muita gente diferente porque uns conhecem uma parte do problema, outros conhecem outra e difícilmente se encontram entre si. Essa é uma das questões importantes da pediatria actual, juntar disciplinas, juntar conhecimentos. Na SPP, que no início foi sobretudo uma associação de pediatras, precisamos agora de criar organismos que tenham gente de outras proveniências.
- Mudou muita coisa desde a altura em que eu ia ao pediatra, há 30 anos?
- Acho que sim, que mudou imensa coisa. Para começar as famílias são muito mais exigentes. O paradigma actual é o de que a medicina tem solução para tudo. Que todas as questão são medicalizáveis. As pessoas não aceitam o fracasso. A medicalização da medicina significa que Questões que eram do âmbito das competências das famílias foram transferidas para a pediatria, a psiquiatria, a pedopsiquiatria, a psicologia e as diversas terapias organizadas à volta disto. Essas competências mais íntimas foram retiradas às famílias. O problema é que o pediatra é muito incompetente nestas áreas. A formação pediátrica é quase só a formação clássica, centrada no hospital e centrada na doença e depois, quando o pediatra vai para a sociedade fazer o seu trabalho percebe que não é aquilo que lhe pedem, que exigem dele. Neste momento o grande problema da formação é compatibilizar uma formação sólida nas áreas clássicas – porque é preciso responder à doença orgânica verdadeira – e depois estar preparado para uma multiplicidade de questões novas.
- Isso implica ajudar as famílias a fazer o quê, pedagogia?
- Implica ouvir as famílias. Descobrir os aspectos relacionados com a alimentação e nutrição, com o comportamento, com o isolamento. Muitas das questões são provocadas pelo isolamento. Os pais estão muito isolados e desprotegidos. Não há redes de pais. A adolescência, por exemplo, é uma área de quase absoluto desconhecimento, as coisas estão a mudar muito depressa e não existe nenhuma rede, nem social, em que os pais se possam integrar para perceberem o que se está a passar com os filhos deles. As questões que aparecem junto dos pediatras, geralmente, são falsas questões. São epifenómenos, questões que surgiram porque havia outras por trás e que nós muitas vezes não conhecemos nem conseguimos inventariar. É muito angustiante. Não se passa só com a adolescência, neste momento há comportamentos da infância que estão muito próximos dos comportamentos clássicos da adolescência. As crianças de 8 e 9 anos estão a ter comportamentos cada vez mais próximos dos comportamentos clássicos da adolescência. A pediatria mudou imenso. Por exemplo, a consulta pediátrica actual, que está prevista no boletim individual de saúde. É a consulta do miúdo que está bem, que não tem doença orgânica, mas cujas famílias têm questões para colocar. O pediatra responde através de um adquirido informal e para o qual não tem depois grandes veículos de transacção, de partilha desses conhecimentos. A pediatria continua muito centrada no modelo hospitalar e esse modelo, neste momento, felizmente, responde apenas a uma pequena parcela das questões. Felizmente, porque hoje em dia as crianças precisam cada vez menos de hospital dado que a maioria das doenças é tratada em ambulatório e tratada rapidamente. O que caracteriza a doença infantil é a rapidez do restabelecimento. Mas a doença crónica em Portugal é uma tragédia, pela escassez de recursos. As crianças que têm doença crónica precisam de facto de hospital, mas de um hospital diferente, multidisciplinar. Precisam de terapeutas que não existem, de psicólogos e de médicos que não existem. No fim precisam de um médico que centralize essa informação toda e a torne eficaz para aquela criança. Depois precisam de um atendimento de proximidade porque elas não vivem todas ao pé do hospital central. Outro desafio da pediatria actual é esse: a organização para o atendimento à doença crónica. O outro problema é o tal problema de como responder a questões que não são médicas, mas que têm uma expressão somática que às vezes leva a criança ao médico.
A última vez que me cruzei com o meu pediatra foi há mais de 20 anos. Era amigo dos meus pais. A verdade é que nunca foi mesmo meu pediatra. É uma memória inventada pela esfera dos blogues, onde Januário se distingue com inspiração, afinco e muitas horas de texto no blogue “A Natureza do Mal”. Cliente assíduo desse sítio, surgiu-me com aquele nome uma familiaridade, um sinal de co-pertença a um remoto país, em Coimbra, no final dos anos 70. Parece que era um grande pediatra e um talentoso contador de histórias que uma vez tinha posto uma ministra a chorar, no Pediátrico, com as histórias dos brinquedos e dos sonhos das crianças doentes. Tratou o esquecimento de me inventar a memória de que Luís Januário teria sido, de facto, o meu pediatra. Tirei a limpo com o próprio e com a família: é tudo mentira, comoi convém às histórias. Januário foi médico de duas primas e provavelmente de mais uns quantos familiares. A mim nunca me deu consulta. Uma memória inventada é muito mais difícil de controlar.
Há muita coisa a acontecer no Ritz ao cair da tarde. À medida que vão saindo da tempestade de cérebros, algumas pessoas despedem-se de Januário. Um homem e duas mulheres. Depois da entrevista, ele volta para Coimbra. O meu pediatra tem muita paciência. Tem voz de falar com crianças. Pensa depressa, mas fala devagar. Conta que a SPP não sonha com grandes realizações. “No último congresso, em que fomos eleitos, eram 1500 pediatras, durante um semana. O que significa que, nessa semana, os pediatras não estavam nos hospitais nem nos consultórios, isso meteu-nos um bocado de medo”. O site da SPP vai ser uma das apostas da nova direcção, com mais interactividade e acesso para os pais.
Há um telemóvel histérico no foyer do Ritz. Ainda se pode fumar. O meu pediatra está a dizer que a maior parte dos médicos faz uma consulta fechada, em que não pára de falar, de conduzir o interrogatório. Esses pediatras ainda não perceberam o que mudou, porque eles próprios continuam na mesma e continuam a fazer sempre as mesmas perguntas, como uma declaração de IRS. O que mudou mais foi o tempo. Não confio nada no gravador digital, mas também trouxe o analógico, para fazer a dobra.
- Imagino que o consultório seja uma boa montra do país que somos, bom para perceber as mudanças. Nota-se essa diferença nas crianças que vos aparecem?
- Há mudanças muito importantes. Nos últimos 20 anos as crianças vão muito mais cedo para as creches, são separadas mais cedo dos pais...
-Isso é perigoso ?
-Não acho perigoso e não noto que seja um problema em termos do desenvolvimento das crianças, pelo contrário. Os miúdos que neste momento têm 2/3 anos e nunca foram ao infantário e vivem com a família – que é geralmente a avó ou a mãe que não trabalha – são miúdos mais problemáticos e com menos capacidade para resolver as questões que surgem a um miúdo dessa idade. Com menos bagagem, com comportamentos alimentares piores, com menos disponibilidade para as questões que se levantam nessa idade: as questões do sono, das birras, de reagir à frustração. São mais frágeis do que os miúdos que vão para a creche e que têm duas grandes vantagens: confrontam-se com os seus pares e aprendem com eles. Há uma linha de investigação que diz que os miúdos aprendem mais com os seus pares do que com as famílias. É uma linha que começou com conhecimentos que vêm da linguística. A expressão linguística das crianças com 5/6 anos deve mais aos pares do que à família. Até em questões como o sotaque e o calão. E não é apenas na linguagem, é também nos papéis que cada um assume no grupo, porque confrontado com os outros ele percebe quais são as suas capacidades naturais, e explora-as mais, e sente quais são as suas insuficiências. Um miúdo em grupo vai ter o papel de líder, ou de animador, ou de habilidoso. Isso falha tudo aos miúdos que estão sozinhos em casa. É que estar sozinho em casa com adultos também não é a situação tradicional, isso nunca aconteceu na longa história da infância. A situação tradicional era de miúdos que estavam em bandos nas comunidades. Agora os miúdos comem num tabuleiro, em frente da televisão. As casas têm cada vez mais televisões, os miúdos têm cada vez mais televisão no quarto. O que significa que estão cada vez mais sozinhos. Depois há a passagem para a adolescência com esse grande desconhecimento do que se passa neste momento com os adolescentes. Os miúdos Dos 12 anos em diante passam a maior parte do tempo a comunicar uns com os outros com formas de comunicação que nós não entendemos. Não sabemos os conteúdos, não sabemos verdadeiramente nada. Não há muito estudo feito e eles não estão disponíveis para dar muita informação sobre esse assunto.
- Eu parto da ideia de que a tecnologia é sempre neutra e de que o que lhe dá uma carga positiva ou negativa é apenas o uso que fazemos dela. Esta tendência tecnológica não pode resultar, pelo contrário, em crianças hiper-estimuladas pela televisão ou pela internet (email, sms, redes sociais, etc ...), por essa imersão na comunicação? Isso não pode ser bom? Não poderemos estar a criar crianças cada vez mais interessadas, por oposição ao estereótipo da criança anestesiada em frente a um ecrã?
- Acho que é uma possibilidade, mas tenho dúvidas sobre isso. Acho que aos 13 anos ganha-se muito mais a ler o Moby Dick , consigo próprio e com o mundo que se abre nessa experiência de leitura. Ganha-se mais do que numa rede de 40 pessoas em que todos trocam monossílabos, onde não se colocam questões e onde a comunicação é minimal-repetitiva. Eu aqui só estou a fazer suposições porque não conheço o conteúdo dessas comunicações. E estou a ser parcial porque também reconheço que esta tecnologia possibilitou que os adolescentes se pudessem contar, porque a maior parte do tempo eles estão a contar a sua vida, ou a sua vida imaginada, aquilo que eles gostariam que a vida deles fosse. Quando dois adolescentes se encontram amorosamente e trocam mil sms num dia, o que eles estão a fazer é a reportar a vida, os mínimos acontecimentos da vida. A certa altura não estão a viver, porque não têm tempo. Não estão a viver, estão a comunicar. Isto cria uma maneira nova de as coisas acontecerem, porque elas estão a acontecer ao mesmo tempo que são contadas. Para jovens muito dotados acho que isso pode vir a ser interessante e criar aspectos novos de compreensão da realidade. A questão é que depois não têm tempo para outras coisas. Para livros como a Guerra e Paz e o Moby Dick – que são o cume e o resumo de uma evolução humana, cultural e civilizacional. Se não forem lidos não existem. Se forem lidos abrem uma perspectiva sobre o mundo que nem com uma semana inteira de sms se conseguiria atingir porque tem um grau de elaboração muito grande, demorou muito tempo a ser construído. Quem está seis horas por dia a trocar mensagens não tem tempo para ler 10 páginas, nem duas, nem uma. Já quase não tem tempo para filmes que não sejam de consumo muito rápido. O encontro dos jovens com o cinema neste momento é, aliás, só uma forma de encontro pessoal, amoroso, físico, sexual, que não tem a ver com a fruição do cinema, tem a ver com uma utilização nova das salas de cinema como local de encontro.
- Mas isso não é novo, essa é uma função histórica da sala de cinema ...
- ... Sim, também.
- Como é que um pai gere um filho enfiado dez horas por dia no computador? Numa troca de mensagens no Messenger, por exemplo?
- Eles não se enfiam logo no Messenger. Há uma idade para tudo, isso é um dos aspectos interessantes de perceber, por exemplo, como é que um miúdo de 11 anos que num momento está alheado desse mundo e num instante muda os seus interesses. Isso tem a ver com os processos de desenvolvimento e com a programação genética dos processos de crescimento e desenvolvimento.
-Programação genética, como assim? Predisposição genética?
-Sim, a aprendizagem da linguagem, por exemplo, é geneticamente determinada. Se o processo de aprendizagem da linguagem fosse um processo de descodificação cognitiva da linguagem dos adultos demorava muito mais tempo do que a explosão de linguagem que existe num miúdo de dois anos. A matriz é uma matriz genética onde ele depois vai encaixar as peças dos falantes à sua volta. As etapas do desenvolvimento são geneticamente programadas. O aspecto ambiente é obviamente fundamental porque se não existir o estímulo ambiental – para falar de uma maneira irritantemente biológica – os genes não são activados. Mas se não existirem os genes adequados não se dá esse passo. Já vi que és céptico em relação a isso, acreditas muito, muito no ambiente?
- Não, acredito nas predisposições e de alguma maneira no ambiente, mas acima de tudo acredito que se pode aprender a lidar com a genética que nos calhou e que há coisas que podemos mudar na nossa química, no banho químico no nosso cérebro. É a tal história de potenciar as nossas qualidades e de circunscrever as nossas fraquezas.
-Não acreditas, então, que exista um determinismo genético?
-Não, nenhum, não acredito no determinismo, nem genético nem ambiental. Não acredito nos discursos que lhes estão associados, de quem se queixa para o resto da vida do que podia ter sido se os pais tivessem oferecido outros ambientes ou uns genes mais interessantes. Atiram-se com demasiada facilidade para as costas dos pais todos os fracassos e preguiças.
- Os pais mudaram muito nos últimos 20 anos. Eu cresci com a ideia de que, mal ou bem, existia família e nessa família havia um pai. Não se podia aceder a ele a toda a hora mas quando era necessário estava presente. Resolvia todas as questões em última instância e tinha uma coerência nas suas actuações. Acima dele ainda havia outro pai, mais velho, que era o avô. Neste momento os adultos parecem muito frágeis. Estou convencido de que o que mudou mais na relação com a infância não foi o lado da criança, foi o lado dos adultos. Vejo-os muito frágeis, a cometer toda a espécie de erros. Por exemplo, a transmitir às crianças a sua própria fragilidade, tornando-os cúmplices quando eles não têm nem idade, nem capacidade nem competências para ser cúmplices. Incapazes de mostrar autoridade, cedendo permanentemente a tudo, sem um programa. Foi o que mais mudou.
- Não me lembro de como era há 20 anos, mas surpreendo-me hoje com a quantidade de pequenos tiranetes que conheço. E os pais são pessoas crescidas, não têm 20 anos.
- É verdade, exactamente. Os pais cedem, estão sempre a ceder. A questão também é perguntar se aos 19 não se está mais bem preparado para ser pai do que aos 39. A disponibilidade que é necessária para se ser pai ou mãe é enorme. O investimento humano que tem de se fazer num recém-nascido e depois numa criança nos primeiros anos de vida é enorme. Ou é feito por seres muito jovens ou por outros que já têm as questões fundamentais da sua vida resolvidas e que já têm idade para ser avós. No meio estão pessoas que têm imensos problemas. Problemas de afirmação profissional, de afirmação pessoal, problemas sentimentais e sexuais para resolver e não têm tempo. Mas voltando ao biológico e ao ambiental, eu acho que aquilo que marca a infância e a adolescência é a ideia de desenvolvimento. O ser humano está sempre em desenvolvimento, mas esses mecanismos estão mais presentes e mais visíveis na infância e na adolescência. Esses mecanismos são geneticamente determinados. Os genes, seja lá isso o que for, estão-se a ligar. Pensa-se que são desencadeados pelo ambiente. Mas eles podem ser ou não ligados e existe um tempo para essa ligação acontecer, ou não acontecer. O menino selvagem que é apanhado com seis anos já não vai falar ou vai falar uma linguagem rudimentar porque no tempo da sua programação para a linguagem não houve estímulos linguísticos. Em relação à música ou à leitura eu também acredito um bocado nisso. Existem os estímulos e desenvolve-se um indivíduo com capacidades musicais ou não existem e ele fica surdo para a música. Um indivíduo de 10 ou 11 anos que tenha vivido em isolamento e que seja posto numa sala de concerto é surdo para aquilo, não percebe aqueles sons, a forma como eles se organizam.
- Não é aos 40 que nasce o amor pela música ou pela leitura ...
- Como disse a Marguerite Duras, o problema é que “muito cedo na vida é tarde demais”.
- Aquele sítio sagrado da infância não volta a acontecer.
- Acredito nisso e não é por ler, é por ver. Por exemplo, não é quase constante nos grandes escritores terem tido uma avó que contava história ou uma tia que contava histórias? Se não lhes contaram histórias eu acho que houve alguma coisa que se perdeu.
- Então do que é que eu preciso para ser pai?
- Precisas da vontade de ter descendência, da vontade de te reproduzires, de acreditares que vale a pena existir uma criatura que é o mais parecido contigo que podes criar porque partilha metade dos teus genes. Também acho que é preciso encontrar alguém que queira o mesmo que tu e contigo, acho que isso é fundamental. A ideia de que um miúdo só vai ter um progenitor é muito empobrecedora. Acho preferível que uma criança cresça com alguém que gosta dela e que ela é capaz de amar do que com uma família completamente disfuncional, baseada na violência e na falta de comunicação. Mas o ideal é ter dois progenitores. Depois é preciso viver e aprender. Os melhores pais que eu conheço são os pais que estão espantados com as habilidades de que os miúdos são capazes de fazer. Acho que isso também mudou, que estamos cada vez mais atentos às enormes capacidades das crianças, mesmo das crianças muito pequenas, e sem preconceitos para as perceber e mais capazes de lhes responder. Eu já era pediatra quando fui a uma sessão e estava um discípulo do Brazelton a passar um video sobre as enormes capacidades do pequeno lactente, do bebé de um mês, e estava a demonstrar à assistência que no primeiro mês de vida as crianças viam, fitavam, seguiam a face humana e objectos. Estavam ao meu lado colegas mais velhos que diziam que aquilo era uma montagem. Dez anos depois aquilo eram aquisições de que ninguém duvidava. Há 10 ou 15 anos os pais perguntavam se os recém-nascidos viam. Hoje sabem que eles já estão a ver na sala de partos. As pessoas estão agora muito atentas à infância e percebem as capacidades imensas de uma criança. Ao perceberem isso, de certeza que aceleram ainda mais as aprendizagens. Apesar de tudo, uma criança de 3 a 5 anos, em idade pré-escolar, é agora incrivelmente mais sabedora do que há 100 anos, nalguns aspectos pelo menos.
- Nalguns casos não corremos o risco de tentar amestrar as nossas crianças, de as pôr a fazer habilidades? Imagino que o cérebro agradeça todo o tipo de estímulos, mas crianças muito pequenas, com três anos e um discurso hiper-articulado, que parecem um político a falar na televisão ...
- Se a criança não for geneticamente muito dotada não consegue, ao três anos, falar como um político. Isso é sempre a demonstração de uma competência. As competências linguísticas, por exemplo, são muito difíceis de amestrar. É redutor falar só do biológico ou genético e do ambiental, não existem só estas duas coisas. Ainda existe um terceiro elemento a que tecnicamente se chamam as experiências únicas ou experiências próprias de cada indivíduo. É aquilo que só aconteceu na nossa vida e que modificou o nosso comportamento e a maneira como vemos as coisas: ter tido varicela ao ano, ter ouvido uma determina história à nossa avó, ter estado em casa quando ela foi assaltada, ter encontrado frente-a-frente um réptil que avançava para nós, ter tido um acidente, um internamento ou uma cirurgia numa determinada época da vida. São experiências únicas, pessoais que têm que ser somadas às influências genéticas e ambientais. Acho a ideia de que temos um componente biológico e depois existe ou não ambiente que possibilita o surgimento das nossas competências, uma ideia profundamente democrática. Tu há pouco estavas a interpretá-la como uma desculpa para as nossas incapacidades, ou como determinismo rude, mas eu acho que é o contrário: todos têm as suas competências, o mais variadas possível, e depois nós temos que permitir que o ambiente seja o mais estimulante para todos, em épocas que não sabemos muito bem quais são, mas são seguramente muito precoces. Todos têm que ouvir histórias, todos têm que ter acesso a livros, todos têm que manipulá-los, todos têm que perceber o que é que lá está, todos têm que ouvir música e ouvir todo o tipo de música e não apenas a música idiota que fazem para as crianças, que pode fazer sentido numa determinada época da vida por causa da repetição, da monotonia, mas depois a certa altura não chega. Tem que haver muita coisa na vida das crianças.
- Mas para além de tudo isso não sobram pelo menos uns trinta por cento de poder que fique nas nossas mãos, para podermos decidir o que havemos de fazer connosco e com a as nossas vidas?
- Sim, também acho que sim. Acho que a ditadura da genética é o nazi-fascismo, a ditadura do ambiente é o comunismo e esses tais 20 ou 30 por cento de que falas são o nosso optimismo e aquilo que resta para acreditar no livre arbítrio e na capacidade de construir um trajecto pessoal, mais livre.
- E as crianças, do que é que elas precisam?
-Precisam de proximidade. Uma criança precisa de muito tempo e as pessoas não têm tempo. Hoje amamos mais as nossas crianças, mas passamos menos tempos com elas. Com as nossas mulheres acontece a mesma coisa, amamos cada vez mais as nossas mulheres, mas passamos menos tempo com elas, não é?
- Não sei.
A conversa continuou até se acabar a luz natural de Lisboa. Ainda me disse que antes de uma pessoa estar pronta para um filho precisa de ter as relações com os pais bem resolvidas. E que as crianças não deviam ser organizadas por idades, que se deviam misturar os mais novos e os mais velhos, como nos bandos de pardais à solta, os putos. Mas isto já não garanto, podem ser recordações falsas, inventadas pelo deus acriançado da memória. Se não é um deus é um determinismo. Falar com o nosso pediatra é como falar com um psicanalista ou com um astrólogo. São pessoas com acesso ao nosso sagrado. Uma pessoa tem sempre receio de não cumprir aquilo que prometeu em criança. A gente tem que se preparar para ter filhos, para o preço dos manipulados, para a ameaça das máquinas de comunicar e para os mistérios da adolescência. Temos que amar os meninos ao ponto de os metermos na ordem. Ao fim do dia o Ritz fica mais burocrático. As conversas demoram menos tempo, está toda a gente a chegar ou a partir. Despedimo-nos com um abraço depois das fotografias. Somos estranhos íntimos. O meu pediatra fala com mais uma pessoa na recepção. Tenho mesmo que me ir embora. Acho que o fim da entrevista não ficou todo gravado e não tive tempo para tirar grandes notas. Não me posso esquecer de que as mulheres e os homens são para amar todos os dias. Um filho faz-se com tempo.